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Eva Potiguara pertence ao Povo Potiguara Sagi Jacu, em Baía Formosa/RN. Graduada em Artes visuais, Mestrado e Doutorado em Educação pela UFRN. É escritora, contadora de histórias, articuladora nacional do Mulherio das Letras Indígenas, Ganhadora do Prêmio Jabuti 2023 na categoria Fomento à Leitura e do Prêmio Literatura de Mulheres Carolina Maria de Jesus 2023 do MINC, na categoria Romance. 2c96b

A Licença para o Fim do Mundo 6w6039

29/05/2025 09h59

 

No país das emergências negligenciadas com falsos discursos, Brasília lavou as mãos. Em 21 de maio de 2025, o Senado Federal aprovou o Projeto de Lei 2.159/2021, a chamada “Lei Geral do Licenciamento Ambiental”, como quem assina um contrato de venda da própria casa antes do furacão. Não houve sirenes, nem alarme, nem luto oficial — só a engrenagem habitual do poder funcionando para atender aos mesmos de sempre: os donos do cimento, do gado, da soja, da mineração, da pressa do progresso capitalista pessoal.

 

O argumento que embala a aprovação é o mesmo que há décadas justifica a barbárie em traje de gala: o desenvolvimento não pode esperar. Mas desenvolvimento para quem? A quem interessa a licença por adesão e compromisso (LAC), agora instituída como regra, que permite a autodeclaração de impacto por parte dos próprios empreendedores, sem análise técnica prévia do órgão ambiental? Para o povo que vive do rio e da roça, certamente não.

 

O que o Senado chama de “agilidade” é, na prática, a institucionalização do atropelo. Grandes obras de infraestrutura, como estradas, usinas, barragens e ferrovias — mesmo que cortem terras indígenas ou atravessem biomas frágeis — podem ser autorizadas com trâmites simplificados, se encaixadas num vago critério de “baixo impacto”. Ora, o que é de baixo impacto para quem vive do concreto, pode ser devastador para quem vive da floresta.

 

Um dos pontos mais alarmantes da nova legislação é o que determina que apenas terras indígenas e quilombolas com regularização fundiária concluída serão levadas em conta na avaliação de impacto. Ou seja, os territórios em processo de demarcação — e são mais de 3 mil entre indígenas e quilombolas — tornam-se invisíveis perante a lei. Ignorar essas áreas é mais do que uma omissão jurídica: é um ato deliberado de genocídio ambiental, um convite à grilagem, um “bom negócio” aos que fazem da terra um ativo e da vida uma variável secundária.

 

Também se cria a chamada “Licença Ambiental por Etapas” e a “Licença Ambiental Única”, dispositivos que fragmentam o processo e permitem que partes de empreendimentos sejam executadas antes da avaliação total dos impactos. É o equivalente ambiental a construir um prédio antes de saber se o solo aguenta — e rezar para que não afunde.

 

E o absurdo ganha requinte com a Licença Ambiental Especial (LAE), incluída de última hora como um e livre para obras consideradas estratégicas pelo governo. Hidrelétricas na Amazônia? Portos em áreas de pesca artesanal? Exploração de petróleo na foz do Amazonas? Tudo poderá ser acelerado com um selo de “interesse nacional” e análise em tempo recorde. Em nome da competitividade, o Estado deixa de proteger e se torna cúmplice!

 

A contradição é grotesca. Às vésperas da Conferência do Clima da ONU — a COP 30 — que será sediada em Belém do Pará, na entrada da floresta amazônica, o Brasil manda ao mundo uma mensagem clara: não contem conosco para frear a crise climática. Pelo contrário, queremos expandir o modelo que ajudou a criá-la. 

 

Enquanto cientistas alertam que estamos ultraando os limites planetários, que o colapso do clima é real e irreversível em muitos pontos, o Senado aprova uma legislação que enfraquece os poucos instrumentos que ainda tentavam proteger a vida. Não se trata apenas de meio ambiente, mas de vidas humanas — especialmente as vidas de quem já vive na linha de frente do desequilíbrio: povos indígenas, comunidades quilombolas, ribeirinhos, agricultores familiares.

 

O Senado despreza o que deveria ser sagrado: o direito das futuras gerações ao que ainda resta de ar puro, de água potável, de sombra, de chão. E faz isso com argumentos de que o licenciamento era “lento demais”, “burocrático demais”, “obstáculo ao crescimento”. Como se o planeta ainda tivesse tempo. Como se a crise climática fosse apenas mais um item da pauta.

 

Em nome do lucro, naturaliza-se o desequilíbrio, em nome da modernização, legaliza-se o retrocesso e em nome da soberania, desconsidera-se o saber ancestral, o território sagrado, o rio que fala, o vento que avisa.

 

No futuro, quando nossos filhos perguntarem como foi que deixamos o mundo chegar a esse ponto, será preciso dizer: houve uma sessão no Senado. Aprovaram a licença para devastar, para esquecer, ou fingir que dá para existir sem floresta, sem água, sem clima, sem comunidade.

 

Mas a floresta não esquece. Os rios não esquecem e os povos também não. A COP 30 em Belém será, mais do que um palco de negociações, um espelho incômodo. Porque diante do mundo, o Brasil terá que justificar por que decidiu facilitar a destruição justamente quando o planeta exige proteção.

 

E é por isso que não podemos aceitar esse silêncio legislativo como sentença. Quando o Senado abdica da responsabilidade de proteger a vida, cabe à sociedade civil se erguer com mais força. Não é mais tempo de esperar por decisões de cima. O enfrentamento à crise climática e à negligência institucional começa com pequenos atos diários e grandes gestos coletivos: plantar, preservar, apoiar comunidades tradicionais, fortalecer organizações socioambientais, pressionar parlamentares, dizer “não” ao consumo predatório e “sim” ao bem viver.

 

A COP 30 será em Belém, mas o verdadeiro debate deve começar em cada escola, em cada vila, em cada rede de afeto. O tempo da omissão acabo! Se o poder decidiu virar as costas à vida, então que a vida nos mova — em mutirão, em roda, em caminhada — a virar esse jogo. Precisamos ocupar as ruas, as redes sociais, resistir, denunciar, educar e reconstruir — com urgência, com coragem, com dignidade revolucionária.

 

Porque defender a floresta, os povos originários e o planeta não é utopia. É urgência e sobrevivência. É o mínimo que ainda podemos fazer por um mundo que teima em seguir respirando, apesar de tudo.

 

Ainda dá tempo — se agirmos agora, juntos, com a radicalidade do cuidado e a coragem da esperança.

 

A licença foi concedida, mas o futuro não assinou embaixo!  

 

 


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